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Durante mais de meio século, o Transplante de Medula Óssea (TMO) ou Transplante de Células-Tronco Hematopoiéticas (TCTH) tem sido usado com mais frequência para tratar numerosas doenças oncohematológicas, hematológicas, imunológicas e hereditárias. Com os avanços nas técnicas, indicações e terapias de suporte, o transplante de medula óssea continua sendo um campo crescente para o tratamento de diversas doenças.
O TMO é diferente da maioria dos transplantes. É uma terapia celular, onde o órgão transplantado não é sólido, como o fígado ou o coração. Neste procedimento, o paciente recebe a medula óssea por meio de uma transfusão de sangue. As células transfundidas circulam pelo sangue e se instalam no interior dos ossos, dentro da medula óssea do paciente. Depois de um período variável de tempo ocorre a “pega” da medula, quando as células do doador começam a se multiplicar, produzindo células normais do sangue.
Parece um processo fácil, mas muita pesquisa e descobertas aconteceram para se chegar nesse “simples” procedimento.
A primeira utilização intravenosa de medula óssea foi realizada em 1939. |
O início do desenvolvimento das bases científicas atuais do TMO ocorreu através de experiências com roedores que, após serem submetidos a radiação em doses letais, sobreviviam ao receber infusão posterior intravenosa de medula óssea. Na década de 50 as pesquisas começaram a ser realizadas em cães. E os pesquisadores buscavam a resposta para três perguntas:
Alguns experimentos foram bem-sucedidos quando os animais receberam infusão da medula de doadores aparentados. Os estudos com cães foram o principal modelo para o desenvolvimento do TMO em humanos.
Ainda na década de 1950, doses letais de radiação eram usadas para o tratamento da leucemia. Embora muitos apresentassem uma recuperação hematológica após o tratamento, todos os pacientes acabavam sucumbindo. Ou por recaída do câncer ou por infecções.
Entre os anos 50 e 60, quase 200 transplantes de medula alogênica (quando o paciente recebe a medula de uma outra pessoa, aparentado ou não) foram realizados em humanos, sem sucesso a longo prazo. No entanto, durante esse tempo, o transplante usando doadores de gêmeos idênticos (chamado de transplante singênico) trouxe uma quantidade razoável de sucesso e forneceu uma base crucial para a pesquisa clínica no campo.
A identificação e compreensão do sistema de histocompatibilidade humano contribuiu de forma decisiva para o sucesso dos transplantes. A histocompatibilidade é a compatibilidade ou equivalência entre células, tecidos e órgãos. Nos seres humanos, este complexo recebe o nome de Antígenos Leucocitários Humanos (HLA).
O HLA é herdado, uma parte da mãe a outra do pai. A identidade HLA é composta por vários genes agrupados na mesma região no cromossomo 6. Cada gene possui uma diversidade muito grande de alelos. Existem os genes da classe I: HLA-A, B e C. E os genes da classe II: HLA-DR, DQ e DP. E em cada um desses grupos existem muitos alelos específicos e diferentes. Sabe-se que mais de 11 mil alelos já foram identificados em todo o mundo. Por isso, é muito raro que dois indivíduos tenham o mesmo grupo de genes. E para o TMO a compatibilidade tem que ser a mais exata possível.
Não podemos falar do complexo HLA sem mencionar o Dr. Paul I. Terasaki, PhD (1929-2016), “pai” do HLA. Terasaki dedicou a vida ao estudo da compatibilidade em transplantes. Mas foi somente em 1964 que seu nome ficou mundialmente conhecido quando desenvolveu o teste de microcitotoxicidade. Um teste de tipagem de tecido entre doadores e receptores de transplante de órgãos que identificava a compatibilidade entre os antígenos de leucócitos humanos (HLA). Em 1970, esse teste tornou-se padrão internacional para a realização de transplantes.
As chances de compatibilidade é de 1 a cada 100 mil. |
Em 1968, o primeiro grande marco no transplante de medula óssea ocorreu com os transplantes alogênicos bem-sucedidos realizados em duas crianças, uma com deficiência imunológica linfopenia ligada ao cromossomo X e a outra com síndrome de Wiskott-Aldrich. Esses sucessos foram seguidos por relatos de transplante efetivo para anemia aplástica e, posteriormente, para leucemia. Os avanços nos testes de histocompatibilidade e a criação de um banco com registros de doadores de medula óssea, como o Programa Nacional de Doação de Medula Óssea (NMDP – National Marrow Donor Program), facilitaram o uso de doadores não aparentados, ampliando assim o número de pacientes que podem receber transplantes.
O Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (REDOME) é o 3º maior banco de doadores de medula óssea do mundo e pertence ao Ministério da Saúde. |
Em março de 1969, o Dr. E. Donnal Thomas (1920-2012) e seu grupo realizaram, em Seattle nos EUA, o primeiro TMO alogênico bem-sucedido, dentro de um modelo que é utilizado até hoje. As células cancerosas são curadas com a quase completa destruição da medula óssea, por meio de radioterapia e quimioterapia, e depois é feito um transplante de tecido saudável para restaurar as funções sanguíneas e imunológicas.
O trabalho de Thomas ajudou a aumentar as taxas de sobrevivência para tipos de câncer no sangue, como leucemia e linfoma. De praticamente zero para mais de 90%.
Dr. Thomas ganhou o Prêmio Nobel de Medicina 1990 . |
No Brasil, o primeiro transplante de medula óssea foi realizado em Curitiba, no Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, pelos hematologistas Ricardo Pasquini e Eurípedes Ferreira em 1979.
“Aprendeu-se muito com o aumento do número de transplantes. O transplante de medula não é um procedimento único, como o de um órgão. Existem diversas variáveis a serem consideradas, entre elas a idade do paciente, o estágio da doença, o grau de compatibilidade do doador e a origem das células que serão implantadas. Graças à observação realizada ao longo dos anos, ficou mais fácil delinear os subgrupos e definir estratégias. Os avanços na identificação de doadores compatíveis, que hoje é genética, e a criação de medicamentos mais potentes, também contribuíram muito para diminuir as complicações e o risco de infecções”. Explica Pasquini.
O sangue do cordão umbilical é considerado uma fonte promissora de células-tronco hematopoiéticas. Seu uso em transplante é um assunto muito explorado pela Rede de Ensaios Clínicos de Transplante de Medula Óssea (BMT-CTN Bone Marrow Transplant – Clinical Trials Network). O estudo analisa a eficácia de transplantes de cordão duplo. A potencial plasticidade das células-tronco no sangue do cordão umbilical que promete regeneração de vários tipos de células, como o tecido cardíaco, endócrino e neuro, sem as controvérsias éticas que envolvem as células-tronco embrionárias.
O transplante de medula como forma de tratamento é um campo a ser explorado ainda. Dados preliminares sugerem um possível papel do transplante no tratamento de doenças autoimunes, como lúpus, esclerose múltipla, esclerose sistêmica e artrite reumatoide juvenil. Além disso, o transplante no útero é promissor para correção precoce de doenças genéticas, como demonstrado com sucesso em alguns casos de tratamento de síndromes de imunodeficiência.